A minha vida de trabalho (escravo), aliada a estudante universitário, dono-de-quarto (sim, eu sou mesquinho) e modelo anoréxico (ok, só anoréxico), está causando uma mudança tão drástica na minha vida que só divergindo sobre o assunto pra vocês entenderem.
A questão é o seguinte. Estava eu indo para meu
emprego A, no hospital, num típico dia nublado quando meu avô liga o rádio e como fundo musical toca
Calypso. Depois que a música em foco passa de sua primeira repetição de refrão (porque esse tipo de música sempre repete o refrão pelo menos quatro vezes pra criar volume e chegar a
3min30s de duração), eu percebo que existe algo errado, algo que não faz parte do equilíbrio cósmico que mantém o universo funcionando, algo que vai além da compreensão da natureza, que talvez não seja explicada nem pelo divino... Meus lábios estavam se movendo, sorrateiramente um som saia da minha boca. Eu estava cantando junto com a Joelma.
Eu dei um grito. Meu avô quase perdeu o controle do carro. E enquanto eu gritava
"Tirem ela de mim. Tirem ela de mim. Xoelma, NÃO!", apertando todos os botões possíveis do rádio para mudar de estação, matá-lo, ou simplesmente desligá-lo, minha mãe desesperadamente gritava no banco de trás,
"O que foiiii?". Eu sabia a letra, eu sabia o ritmo, a sincronia, os gemidos que ela dava. Enfim, eu estava possuído.
Foi com esse caso que ao me olhar no espelho eu não vi mais aquele garoto que escutava
The Beatles, tinha idolatria por
Bob Dylan, era fã incontornável de
Mika e
Dangerous Muse. Muito menos o garoto que assistiu quase todas as obras de Almodóvar, nunca perdia um
Cannes, descobria sozinho no mundo
underground todos os mais fascinantes filmes alternativos. E onde estava aquele que entendia de moda, comportamento, tendências editorias, virtuais e jornalísticas? Na frente do espelho eu vi um garoto castigado pelo trabalho árduo, consumista, que escuta apenas a rádio popular, que cantarola
Calypso no
trabalho A,
Victor e Léo no
trabalho B (gente, eu to quase aceitando a idéia de ir pro show), que vibrou assistindo
O Homem de Ferro no cinema, que está querendo ver o novo
Hulk e que anda perdido em tendências e só soube que o
São Paulo Fashion Week estava rolando quando ele chegou na metade (via
Te Dou Um Dado?).
Se ver no espelho e ter uma crise por se achar um tribufú já não é fácil. Ter uma crise por se ver no espelho e se achar coloquial é pior ainda.
E foi assim que eu descobri que ser uma pessoa ligada a cultura e as tendências do mundo pop e
underground (outra palavra que eu adoro usar) não é nada fácil.
Aliás, foi observando uma discussão entre uns grupos culturais aqui da cidade e a minha própria vida (mais pra antes do que pra depois) que eu resolvi presentear os leitores desse blog com o
Manual de Como Ser Culto. Com pequenos passos que podem ser seguidos facilmente até pelos amantes da Mulher Melancia, o
Fala Consciência vai ensinar para você, leitor esperto, a como carregar o título de
cult, alternativo,
underground, pitoresco, indie, ou seja, um (pseudo) culto.
Passo 1 – Tenha grana e tempo sobrandoLógico que você
NUNCA vai admitir isso, afinal, você não vai ter a grana na verdade, pois você vai ser sustentado pelos pais ou por aquela vó aposentada pelo
TSE que ganha uma nota e só tem o querido netinho pra corujar. Enfim, a grana não é sua, mas você gasta. E gaste bem, com livros, filmes, ingressos para o teatro, bandas de garagem. Carro? So se for usado e surrado. Ou como você vai poder levantar a bandeira do preço alto para os eventos culturais em frente ao teatro municipal se você tem um
Corolla esperando na saída? Com a grana, você não precisa se prender a coisas nada culturais como trabalho com carteira assinada, faça no máximo uma faculdade voltada para artes, comunicação ou sociologia (Filosofia, Música, Artes Cênicas, Letras, Jornalismo, Publicidade e Propaganda dão status, mas Ciências Sociais é a top). E com o tempo livre sempre se dedique a programas alternativos, bares
undergrounds, cinema de artes, sebos (livraria é coisa de rico) e por aí vai.
Passo 2 – Seja sempre a frente do seu tempoArthur Rimbaud é um dos poetas franceses que mais marcaram o mundo (mais pela sua vida gay
es-cân-da-lo-sa, do que pelo seu trabalho, enfim...). Sua obra é considerado sempre
“a frente do seu tempo” (ou seja, ele morreu pobre pra ser reconhecido depois). Logo, se você deseja ser conhecido como alguém culto, você tem que ser moderninho e transgressor total. Defenda sempre idéias com um fevor absurdo, suba em cima da mesa, tenha o dom da oralidade, saiba chamar a atenção de todos para o seu redor. Torne-se um incompreendido (mas no campo das idéias sociais, não vem com nada emocional não ou tu vai ser considerado emo e não culto).
Passo 3 – Tenha estiloVocê acompanha o
Fashion Rio? Então você não é culto. Você acompanha o
São Paulo Fashion Week? Então você é culto só se for pra estudar tendências de comportamento e diversidade capitalista . A sua pose tem que ser inabalada. Você não pode ser escandaloso (ou vai ser bixa louca), mas você tem que saber chamar a atenção, principalmente quando você esta explicando porque aquele filme é uma droga e você prefere o livro (que você não leu). Fume muito
Marlboro, Golden Gate, Gudang Garam, mas
Free, Carlton e
Master não pode. Só beba destiladas,
Absolut comanda (mas compre-a em grupo,
NUNCA só você, é coisa de burguês), vinho também, principalmente em sarais. Tenha sempre aquele ar de esnobe, aquela pose blasé, cuidado com a gesticulação, desmunhecar pode, falar arrastado pode, usar gírias em inglês pode, em português
NUNCA. Sempre critique quase tudo, principalmente em espetáculos, mas quando demonstrar que gostou de algo, bata palmas sempre de um jeito que o difira do resto da multidão, quase psicodélico, de preferência com o cigarro na boca, gritinhos e assobios, sempre mantendo a pose de esnobe.
Passo 4 – Saiba vender a sua imagemSaiu com os amigos para um café sem açúcar? Então ocupe uma cadeira só com sua bolsa de tiracolo (
NUNCA use mochila, mochila é coisa de universitário que tem estágio), e sua bolsa tem que ser grande, mas nunca o suficiente para você, e cheia de buttons personalizados. Sempre deixe a sua edição da
Bravo!, Caros Amigos e
Carta Capital a mostra.
NUNCA use roupas de marca. Sempre prefira blusas listradas (preto/vermelho ou preto/branco) jeans surrados ou bermudas, além do óculos de armação grossa preta ou branca e o
All Star que pode ser qualquer modelo contanto que seja
All Star, pulserinhas artesanais também dão um toque. Cabelo grande bagunçado (tipo
Arctic and Monkeys) para meninos e cabelo preto escuro curto ou ondulado (tipo
Karine Alexandrino) para meninas. Sempre domine as conversas, principalmente depois de filmes alternativos ou peças patrocinadas pela
Lei de Incentivo a Cultura, mostrando seu conhecimento de caso.
Passo 5 – Morte ao POPVocê não assiste rede
Globo porque ela
“manipula, distorce os fatos, aliena e lança musicas como Créu em nível nacional”. Séries de sucesso como
Heroes e
24 Horas devem ser evitadas ao extremo, de
Lost você deve gostar apenas da primeira temporada. Você não escuta rádio, só podcast’s especializados.
Cinemark NUNCA. Porque só passa
blockbusters comerciais
Hollywoodianos. Nada de livros do
Harry Potter, tire a fantasia da sua vida, exceto
O Senhor dos Anéis e a primeira trilogia (feita) de
Star Wars, mas nada de fanatismo e cosplays. Sempre tenha jazz no seu MP3, mas ele não pode ser da
Apple. E sempre esteja ligado a iniciativa científica (essa bem menos), aos coletivos culturais, selos independentes, cenário underground e o mesmo do gênero.
NUNCA concorde com o que todos concordam. Gente culta tem sempre opinião própria (é do contra).
Esse é um Passo a Passo de ficção, mas qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.Quanto ao meu período pouco cultural, eu vou retomar aos poucos minhas atividades, tentar concilia-las, mesmo porque eu to gratificado com os podcast’s do
André Fischer (eu achei tudo quando ele falou,
“vocês sabem como é difícil ser underground em Los Angeles”, super que eu sei). Tenho que passar longe de coisas como
Amigo Fura Olho do
Latino e minhas conversas animadas sobre o
Palmeiras no corredor da
UFAC.