terça-feira, 27 de setembro de 2011

Ninguém é exatamente bom, ninguém é exatamente mau... ou não!


Somos acostumados a acreditar que tudo se divide em apenas dois elementos: o bem e o mal. Tudo é assim. Tudo nos dirige a isso. Dá até pra pegar como exemplo o Big Brother Brasil, onde em cada edição somos apresentados a um grande vilão, aquele que se sobressai malignamente, em detrimento aquele que se faz de coitadinho e por carisma popular e a lógica eterna do bandido e mocinho, acaba ganhando.

Ah, Big Brother, que belo exemplo cúmulo do populismo, heim Samuel? Ok, pseudo cult, vamos pra um exemplo melhor. Rio de Janeiro, 12 de junho de 2000, o ônibus da linha 174 é sequestrado por um rapaz aparentemente louco e completamente bandido. O sequestro foi filmado e transmitido ao vivo pela televisão, cujas imagens são mostradas em todo o país que comemorou a morte do bandido e chorou o assassinato de uma das reféns.

Aí você assiste o documentário Ônibus 174, do José Padilha, e descobre que a merda foi bem varrida pra debaixo do tapete. As diversas passagens do filme nos mostram uma mídia sensacionalista, uma televisão que quer exibir muito de perto tudo o que acontece. Isso provoca até uma certa dificuldade entre a polícia e o bandido, o Sandro, menino de rua sofrido, sem base familiar nenhuma, que em um momento de loucura pegou uma arma e tacou terror. Esse “menino crescido” se torna poderoso em meio aos holofotes e câmeras de TV. Ele agora é o centro das atenções, como nunca fora antes. É pra sentir pena do Sandro? Não sei, afinal, o Sandro era um vilão.

Tenso, não?

É difícil encontrar obras que trabalhem com o desafio de enfrentar a dualidade da divisão bem e mal. E quando elas surgem, não só são cercadas de incompreensão generalizada como geralmente de uma polêmica monstruosa. Afinal, são obras que não seguem uma linha de didatismo, mas de reflexão, de choque, o simples ato de mostrar uma realidade que existe, mas que fingimos não existir, o extremo do extremo.

É o caso do filme espanhol Tras el Cristal, de 1975, que inverte conceitos e se torna moralmente ambíguo e um tanto perturbador. Proibido em alguns países, como a Austrália, somos apresentados a um show de perversidade, que mesmo sem nada absolutamente explícito é um exercício cinematográfico de depravação humana. No enredo, um ex-médico nazista e pedófilo sente-se culpado após torturar e assassinar sua última vítima e se joga de um telhado. Anos mais tarde, confinado em um pulmão de aço (licença poética), aceita como enfermeiro um garoto, Angelo, que também foi uma de suas vítimas no passado.

A partir daí começa uma tortura psicológica em que num primeiro momento pensamos se tratar de uma vingança. Mas não, Angelo deseja ser igual aquele que lhe atingiu de forma tão monstruosa. Com cenas muito fortes, e mergulhando no horror da pedofilia e dos experimentos nazistas com crianças, Tras el Cristal é repugnante, mas exerce um certo fascínio. Talvez pela ótima produção (mesmo com tão pouco) e excelentes e convincentes atuações. É difícil não demonstrar reações a loucura de Angelo (que toma conta aos poucos das telas), da angústia na morte das crianças, e acima de tudo de seu nervoso final, que nos faz questionar o sentido de tudo aquilo. Faz sentido? Talvez numa realidade que não pertence a nós, uma realidade de tão poucos, que de fato, o horror de Tras el Cristal não pode ser compreendido.

Agora, para ir no máximo da depravação humana através da contrapartida do mal, nenhum filme é mais ideal para esse exemplo do que aquele que é considerado até hoje o filme mais chocante de todos os tempos, Saló o le 120 giornate di Sodoma. De fato, o nazismo e o fascismo (tema extremamente abusado até hoje) nunca foi tão bem representado como através dessa ideia de Pier Pasoline em compará-lo a obra do Marques de Sade, Os 120 dias de Sodoma. Mas só porque a ideia de comparação é válida, não significa que em algum momento que esse filme seja tragável.

No filme (e seguindo a linha básica da obra literária), quatro poderosos homens, o Duque representando a nobreza, o Bispo a igreja, o Presidente como personificação do poder político e o Magistrado como a corrupção e a parcialidade da justiça, sequestram 16 jovens e os fecham numa mansão para realizar todas as suas fantasias mais perversas e aterradoras divididas em três momentos, o Círculo das Taras, o Círculo da Merda e o Círculo do Sangue.

A princípio, Saló é visto em superficialidade e se demonstra nojento, repulsivo e horrível. E é! O sexo é retratado como castigo, não como prazer, existe o tempo todo, mas é vazio. Temos a cena de um garoto metralhado porque tentou fugir, em uma cena, um dos senhores solta sua merda no chão e obriga uma das confinadas a comer o excremento com uma colher, e quando chegamos a terceira parte, o sangue começa a ser derramado cruelmente. Não é como um filme de terror moderno que você QUER ver as mortes (oi, Premonição), você fica desesperado, você quer que aqueles jovens fujam.

E talvez esse seja o maior terror de Saló, não a questão das taras, da imoralidade, mas o poder que esse filme tem de nos remeter desesperança. A humanidade não deu muito certo. Existe uma cena interessante em Saló, onde os jovens com medo e desejando sair daquilo, começam a entregar delitos um do outro, em um efeito bola de neve, ate culminar em um assassinato. Talvez essa seja o momento mais duro do filme. O “bem” não sendo sucumbido pelo “mal”, mas assimilando-o.

E não, eu não assisti Serbian Movie. Não tive coragem. Pior, não me senti atraído, como me senti por tanto tempo com Saló ate ter coragem de vê-lo. Li tudo que pude sobre Serbian Movie, e a conclusão que cheguei é que se um filme deseja usar horror e depravação extrema sem sentido, ele realmente não merece ser visto.

Mas eu assisti Martys e esse filme mexeu comigo mais que todos os outros citados. Formado por duas partes quase distintas, mas que se unem magistralmente através de uma sequência de cenas perturbadoras, esse horror gore francês é simplesmente... incrível. O filme é todo angustiante, e só piora ate seu final que mistura uma complexidade de sentimentos.

É difícil falar a sinopse sem falar demais. A história baseia-se na vida da menina Lucie, vítima de violência de forma bizarra, que conseguiu fugir de seu cativeiro. Tenta superar seu terror, porém, 15 anos mais tarde, Lucie está totalmente fora de controlo e procura por vingança que acredita ter conseguido, arrastando sua melhor amiga Anna para uma carnificina. E é então quando nos convencemos que o filme fala apenas de vingança, que temos uma revolta impressionante.

Logo, Anna se vê envolvida num jogo de terror, onde os limites da ética e do respeito humano são completamente desrespeitados em busca de uma resposta para uma pergunta que deveria se manter irrespondida.

O terço final de Martys é carregado e muito desconfortável. É impossível se manter indiferente. Para piorar, o filme exala tristeza e impotência. Seu momento final não leva a conclusão alguma, apenas de que os princípios da natureza humana podem não passar de uma massinha de modelar.

Filmes como Tras el Cristal, Saló e Martys são para a maioria das pessoas impossíveis de compreensão comum e para um punhado de outras, apenas um retrato da fetichização da violência ou da perversidade. Foi Witold Gombrowicz, quem disse que “A arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados”. Creio que ele tenha sido um tanto infeliz em sua colocação, mas não de todo errado. Não é ser perturbado aquele que procura entender um pouco mais dos limites daquilo que é incompreensível, isso simplesmente esta na nossa natureza, é a decisão de cada um decidir como isso será feito, mesmo que através da violência e da perversidade.