quarta-feira, 9 de junho de 2010

A beleza do sangue e a poesia da violência


“Quando a sorte sorri para algo tão fugaz como a vingança, não só é uma prova ímpar de que Deus existe, mas de que cumprimos os seus desígnios”

Existe um momento em Kill Bill – Parte 2, que um dos atores que interpreta “uma figura paterna de Bill” descreve a reação do jovem assassino profissional em sua primeira vez no cinema vendo uma loira estonteante na tela: “Ele chupava o dedão compusivelmente enquanto apertava a aba da própria calça”. Poucas vezes na história do cinema, um momento descreveu tão bem como a sétima arte é capaz de influenciar a vida de uma pessoa. E esse momento estava nesse simples diálogo, nessa simples cena. E de longe, Kill Bill foi um dos filmes que mais marcou essa minha trajetória de paixão com o cinema.

Kill Bill é um marco. Porque pega a violência mais brutal e transforma em poesia. Para alguns, é uma das piores e mais pops obras de Quentin Tarantino, para mim é uma homenagem ao cinema grindhouse sem igual, que não existe nem em sua real tentativa de homenagem em Death Proof. Nunca o espirro de sangue foi tão belo e um desejo frenético por mais toma conta de quem assiste. No fim, a jornada do grupo de extermínio As Víboras Mortais pega um apanhado de elementos ocidentais para traduzir nossa real paixão pelos elementos orientais (o que para alguns soa como uma baita calúnia de seus conceitos reais de filosofia, mas fodam-se, é o que o povão quer), soando tão forte, que eleva Kill Bill a cinema e vira um clássico. E só o cinema tem esse poder, o de transformar a violência em beleza, espetáculo e admiração.

Um filme que tenta chegar perto disso e estreia em breve nos cinemas nacionais é Kick Ass, adaptação dos quadrinhos de Mark Millar e John Romita Jr. O filme já chega com um elemento incomparável: é melhor que seus quadrinhos. Sim, isso é verdade, eu li! Kick Ass traz a historia de um jovem bobão que após ler muitos comic books decide ser um super herói e so leva ferro. Mas, ele fica famoso pelo mesmo motivo que qualquer idiota fica famoso hoje em dia, pelas redes sociais (calma twitteiros, nesse caso é o Youtube e o, que Deus o tenha, MySpace). Porém, o que começa meio idiota, passa para uma trama de violência estética tão grande, que ganha todo o meu respeito.

O buraco é mais embaixo. Em seu caminho na tentativa de ser um herói, sem na verdade realizar grandes feitos, o jovem Kick Ass se torna inimigo de um poderoso mafioso e cruza seu caminho com a dupla Big Daddy e Hit Girl. E aí que a história começa a ficar boa. Nem mesmo Nicolas Cage conseguiu tirar a grandiosidade do personagem Big Daddy, um homem pertubado que transforma a própria filha de 13 anos em uma assassina extremamente poderosa e imabatível. E é com essa dupla que temos as melhores cenas de ação do ano. Sim, se você acha que Homem de Ferro 2 é a melhor adaptação de quadrinhos de 2010, saia fora, o premio vai para Kick Ass.

Mas e onde entra sangue e violência nessa historia mesmo? Ah sim, Kick Ass é censura RED, só maiores de 18 anos podem assistir. Sobram referências pop pra todos os lados, corpos explodem a todo instante e jorram palavrões e músicas empolgantes a todo momento. Todas as batalhas com Hit Girl são de uma empolgação medonha, mas é sua apresentação o que mais supreende, quando ela sozinha mutila e mata sem piedade uma gangue inteira. A banalização da violência chega então ao limite, onde, num filme para maiores de idade, temos três personagens menores de idade envolvidos em sangue, carnificina e morte em close. O que é Kick Ass então? Praticamente um Watchmen com crianças.

Sim, pois se Kick Ass também é mais uma afirmação de que hoje em dia, pra fazer sucesso com os adolescentes, tudo, até a violência, tem que ser com adolescentes protagonistas (Deus, Percey Jackson e Crepúsculo são os desastres de uma geração), Watchmen existe para mandar tudo isso tomar no cu e dizer: “Eu sou foda e vocês são lixo”. Esqueça o viadinho do Batman, o pamonha do Superman e o emo do Homem-Aranha. Watchmen não é um filme sobre super heróis fantásticos lutando contra vilões complexos. Watchmen te faz questionar o heroísmo. Afinal, é aceitável que um homem saia encapuzado pelas ruas da cidade, cheio de apetrechos esquisitos, espancando pessoas e fazendo justiça com as próprias mãos?

Considero Wachmen o melhor filme de ação de 2009. Tanto em sua HQ quanto em seu filme, temos uma tradução de como a sociedade assimilou a violência para si em sua cultura pop. A invasão da penitenciaria é o exemplo perfeito disso. Nossos olhos estão acostumados com a violência projetada, mais do que isso, estamos fascinados por elas em suas batalhas, sanguinolência, o despertar do nosso desejo de vingança e inconscientemente pedimos mais. E se você me contestar, mas gostar de algum filme do Quentin Tarantino, qualquer um, seus argumentos já são bem tolos, ou você não curtiu a cena final de Bastardos Inglórios, quando Aldo marca a suástica na testa do coronel nazista Hans Landa?

O cinema não só foi capaz de banalizar a violência, nos tornou admiradores dela.

E existe um filme em especial que representa isso da forma mais assustadora possível e ainda pode ser encontrado em duas versões. Seu nome? Deliciosamente sugestivo: Violência Gratuita.

Michael Haneke, diretor desse filme, é frequentemente chamado de gênio por alguns e completamente imbecil por uma grande maioria, por ter feito um dos filmes mais sádicos e malignos de todos os tempos. Sem brincadeira, Violência Gratuita, consegue ser o que muitos filmes tentam e não conseguem, repugnante, desconcertante, chocante e, principalmente, revoltante. Ele exige um preparo de você para acompanhá-lo, se não tiver, você vai se perder no caminho.

A trama é razoavelmente simples e a produção levemente estilosa, um tom clássico e bom gosto minimalista. Família feliz vai pra casa de campo, dois belos e educados jovens pedem ovos, os jovens quebram a perna do pai, seqüestra a família dentro da própria casa e começa uma tortura física e psicológica angustiante e tenebrosa. O filme é um exercício de cinema. E uma interessante discussão do papel e dos limites da ficção, da cumplicidade do espectador. Inclusive, no final do filme, os personagens discutem textualmente sobre a ficção como um correspondente do real. That’s the point!

O tenebroso e violento (droga, redundância) Violência Gratuita realiza uma discussão com os seus espectadores (sem precisar discutir na verdade, só usa suas cenas pra isso) sobre limites e que a arte pode colocar dentro da sua vida o mal como algo simples, cotidiano, corriqueiro e admirável. Sim, pois quando a família sequestrada pergunta: “Por que vocês estão fazendo isso?”, um dos jovens, com um olhar cínico, e representando naquele momento toda a derrota do bom senso da sociedade pelos meios de entretenimento, resultando na banalização da violência responde: “Não há motivo”.